quinta-feira, 10 de março de 2011

"MENTALIDADE DEMOCRÁTICA..."

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Controlos e ajustes

Seres falíveis como nós têm de aceitar sempre a possibilidade de estarem errados. Mas não têm, nem devem, aceitar que estão sempre errados. Em muitos casos, acertamos na verdade, e muitas vezes por sorte; noutros casos, não acertamos. A verdade ou falsidade das nossas convicções não depende de nós, mas antes da realidade que é objecto das nossas convicções. O que depende de nós é a justificação cuidadosa das nossas convicções. E é bastante menos provável que sejam verdadeiras por pura sorte convicções que não procurámos justificar cuidadosamente do que as que são continuamente objecto desse cuidado.
Podemos pôr todas as nossas convicções à prova, mas não ao mesmo tempo – pois não é possível pôr convicções à prova sem partir de outras convicções. Além disso, não pode também cada um de nós pôr todas as suas convicções à prova, mesmo que não ao mesmo tempo: alguns põem em causa convicções filosóficas, outros científicas, outros ainda históricas e outros políticas. É uma vez mais o trabalho cognitivo distribuído por várias pessoas.
Somos falíveis. A nossa estrada em direcção à verdade é inevitavelmente feita de controlos e ajustes. Comparamos o que vemos com o que sentimos ou ouvimos, e se houver discrepância, introduzimos mais controlos e ajustes. Introduzimo-los também quando comparamos as nossas convicções com as convicções alheias e aí descobrimos discordâncias. E se as convicções de várias autoridades – cientistas, religiosos, filósofos – forem incompatíveis, introduzimos mais controlos e ajustes. O mesmo fazemos quando as nossas diversas preferências, e também as preferências alheias, são incompatíveis.
Em todos estes processos, os controlos e ajustes não são outra coisa senão raciocínio: precisamos de raciocinar, ou com base no estudo de autoridades, ou com base no que os outros nos dizem, ou com base nas preferências.
O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controles e ajustes permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.
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Argumentação

Quando o raciocínio visa persuadir outra pessoa, chama-se argumento. E quando se argumenta podemos fazê-lo com probidade epistémica ou não. Com probidade epistémica, a argumentação é uma actividade conjunta de procura da verdade. Sem ela, é uma mera disputa verbal para ver quem ganha.
Porque somos seres falíveis, a liberdade de debate público é um instrumento crucial para a procura da verdade e a correcção dos erros. Mas pensar que de qualquer debate emerge automaticamente a verdade é outra vez a ilusão do automatismo. A discussão, pública ou privada, é um instrumento de procura da verdade exclusivamente quando as pessoas envolvidas estão de boa-fé. Quando as pessoas envolvidas se entregam à retórica da disputa verbal, para ver quem ganha, o instrumento original foi distorcido a ponto de se tornar não um meio adequado para descobrir verdades, mas um dos seu mais sérios obstáculos – porque dá às pessoas a ideia errada de que o debate e o raciocínio, a racionalidade e a argumentação não passam de jogos de forças. Quem faz do debate um mero jogos de forças, é natural que pense que é disso que se trata; o problema é outras pessoas pensarem que essa é a única maneira de encarar o debate.
Um argumento visa persuadir o nosso interlocutor a aceitar uma conclusão que ele originalmente não aceita. Se não partirmos de premissas que ele aceita, o argumento é inútil. Tal como seria inútil cada um de nós tentar descobrir conclusões partindo do que não aceitamos. Para aceitarmos uma conclusão com base em premissas, temos de começar por aceitar as premissas. É por esta razão que é ilusório pensar que podemos pôr tudo em causa com base em nada. Pôr algo em causa é avançar um argumento contra uma certa ideia, mas não se pode apresentar argumentos sem premissas: não podemos ter razões para pôr uma ideia em causa se não aceitarmos outras ideias com base nas quais pomos a primeira em causa.
Argumentar correctamente implica começar por procurar as ideias que partilhamos com o nosso interlocutor, ao passo que nas disputas retóricas se rejeita tudo o que o interlocutor afirma. Só partindo do que partilhamos com o nosso interlocutor podemos chegar a argumentos que ele possa aceitar. Argumentar correctamente é mostrar ao nosso interlocutor que ideias que ele aceita implicam ideias que ele quer rejeitar. E isso não é fácil de fazer.  (…)  E se não estiver disposto a fazer isso, não vale a pena fingir que está a tentar argumentar correctamente: está apenas a tentar o equivalente verbal da violência física.
Haverá sempre casos em que não conseguimos persuadir os nossos interlocutores. Em casos de discussão e análise de algumas ideias, não temos de decidir com base nelas, pelo que a inclusão não tem outra consequência que não o manter a discussão viva. Mas noutros casos temos de tomar decisões, fazer leis, agir. O que fazer então?
Quem não tem uma mentalidade democrática nem probidade epistémica, tenta manipular a discussão – ou impedir que esta chegue a ocorrer. Mas o que se deve fazer é acolher a discussão e aceitar tranquilamente a decisão da maioria. Talvez noutra oportunidade a maioria descubra que estava errada. Ou talvez nós descubramos que estávamos errados. Ou talvez nenhuma dessas coisas aconteça. Em qualquer caso, não temos outra maneira honesta de proceder senão conceder um período generoso de discussão honesta da matéria em causa, e depois deixar que cada um dos nossos interlocutores vote segundo a sua consciência. A discordância irresolvida é normal em seres epistemicamente falíveis: significa que pelo menos alguns de nós estamos a errar algures, e não conseguimos ver onde. Mas é apesar de tudo mais provável que seja certa a opinião da maioria, se esta em nenhum momento abdicou da probidade epistémica, apesar de poder não o ser.
Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos – cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes – tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto. Teremos então boas justificações para tomar as nossas ideias como provavelmente verdadeiras – até alguém mostrar que são falsas. Contudo, o que é afinal a verdade?
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- in capítulo “8.Raciocínio”, págs. 83 a 88 do livro “Filosofia em Directo”, de “Desidério Murcho”, colecção “Ensaios da Fundação”, volume 8, Edição de “Fundação Francisco Manuel dos Santos”

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