quinta-feira, 19 de julho de 2012

Uma classe zombie e um ministro bárbaro


in PUBLICO de 18.07.2012:

"Uma classe zombie e um ministro bárbaro"

Por Santana Castilho


Nuno Crato vai estatelar-se e perder-se no labirinto que criou para o ano lectivo próximo

Numa sexta-feira, 13, a tampa de um enorme esgoto foi aberta ante a complacência de uma classe que parece morta em vida. Nuno Crato exigiu e ameaçou: até 13 de Julho, os directores dos agrupamentos e das escolas que restam tiveram que indicar o número de professores que não irão ter horário no próximo ano lectivo. Se não indicassem um só docente que pudesse vir a ficar sem serviço, sofreriam sanções. Esta ordem foi ilegítima. Porque as matrículas e a constituição de turmas que delas derivam não estavam concluídas a 13 de Julho. Porque os créditos de horas a atribuir às escolas, em função da deriva burocrática e delirante de Nuno Crato, não eram ainda conhecidos e a responsabilidade não é de mais ninguém senão dele próprio e dos seus ajudantes incompetentes. Não se conhecendo o número de turmas, não se conhecendo os cursos escolhidos pelos alunos e portanto as correspondentes disciplinas, não se conhecendo os referidos créditos, como se poderia calcular o número de professores? Mas, apesar de ilegítima, a ordem foi cumprida por directores dúcteis. Como fizeram? Indicaram, por larguíssimo excesso, horários zero. Milhares de professores dos "quadros" foram obrigados, assim, a concorrer a outras escolas por uma inexistência de serviço na sua, que se vai revelar falsa a breve trecho. Serão "repescados" mais tarde, mas ficarão até lá sujeitos a uma incerteza e a uma ansiedade evitáveis.

Por que foi isto feito? Que sentido tem esta humilhação? Incapacidade grosseira de planeamento? Incompetência? Irresponsabilidade? Perfídia? Que férias vão ter estes professores, depois de um ano lectivo esgotante? Em que condições anímicas se apresentarão para iniciar o próximo, bem pior? Que motivação os animará, depois de tamanha indignidade de tratamento, depois de terem a prova provada de que Crato não os olha como professores, mas, tão-só, como reles proletários descartáveis? É de bárbaro sujeitar famílias inteiras a esta provação dispensável. É de bárbaro a insensibilidade demonstrada. Depois do roubo dos subsídios, do aumento do horário de trabalho, da redução bruta dos tempos para gerir agrupamentos e turmas, da tábua rasa sobre os grupos de recrutamento com essa caricatura de rigor baptizada de "certificação de idoneidade", da menorização ignara da Educação Física e do desporto escolar, da supina cretinice administrativa da fórmula com que o ministro quer medir tudo e todos, da antecipação ridícula de exames para o início do 3.º período e do folclórico prolongamento do ano lectivo por
mais um mês, esta pulseira electrónica posta na dignidade profissional dos professores foi de mais.

Todas as medidas de intervenção no sistema de ensino impostas por Nuno Crato têm um objectivo dominante: reduzir professores e consequentes custos de funcionamento. O aumento do número de alunos por turma fará crescer o insucesso escolar e a indisciplina na sala de aula. Mas despede professores. A revisão curricular, sem nexo, sem visão sistémica, capciosa no seu enunciado, que acabou com algumas disciplinas e diminuiu consideravelmente as horas de outras, particularmente no secundário, não melhorará resultados, nem mesmo nas áreas reforçadas em carga horária. Mas despede professores. Uma distribuição de serviço feita agora ao minuto, quando antes era feita por "tempos lectivos", vai adulterar fortemente a continuidade da leccionação das mesmas turmas, em anos consecutivos, pelos mesmos professores (turmas de continuidade), com previsível diminuição dos resultados dos alunos. Mas despede professores. As modificações impostas à chamada "oferta formativa qualificante", mandando às urtigas a propalada autonomia das escolas, substituídas nas decisões pelas "extintas" direcções regionais (cuja continuidade já está garantida, com mudança de nome) não melhora o serviço dispensado aos alunos. Mas despede professores.

Ao que acima se enunciou, a classe tem assistido em letargia zombie. Não são pequenas ousadias kitsch ou jograis conjuntos de federações sindicais, federações de associações de pais e associações de directores, carpindo angústias e esmagamentos, que demovem a barbárie. Só a paramos com iniciativas que doam. Os professores têm a legitimidade profissional de defender os interesses da classe. Digo da classe, que não de cada um dos grupos dentro da classe. E têm a responsabilidade cívica de defender a Escola Pública, constitucionalmente protegida. Crato vai estatelar-se e perder-se no labirinto que criou para o ano lectivo próximo. Perdidos tantos outros, é o tempo propício para um novo discurso político, orientador e agregador da classe. A quem fala manso e age duro, urge responder com maior dureza. Lamento ter que o dizer, mas há limites para tudo. Como? Assim a classe me ouvisse. Crato vergava num par de semanas.

(Nota: o sublinhado e o bold é de minha autoria)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A CAMINHO DA TOTAL ESCRAVIDÃO – A (in)dignidade do trabalho.

JORNAL PÚBLICO de 05.07.2012

Pelo contrário
A (in)dignidade do trabalho
Por Manuel Loff

O peso da remuneração do trabalho no conjunto da riqueza produzida tem vindo a descer desde 1975
3,96€ por hora. Brutos. Desconte daí Segurança Social, IRS. É quanto poderá ganhar se quiser trabalhar como enfermeiro no setor público nos próximos tempos, pagos não diretamente pelo Estado, mas por uma legalíssima empresa de prestação de serviços que, comportando-se como se fosse um mafioso da imigração ilegal, fica com 24% daquilo que o Estado paga a essa empresa para lhe pagar a si.

A ARS de Lisboa e Vale do Tejo lançou "um concurso público para aquisição de serviços de enfermagem, cujo valor-base era de 8,50€ por hora", mas "a maioria das firmas apresentou valores muito reduzidos face ao valor-base proposto, tendo sido adjudicado a um preço que variou entre 4,77 e 5,19€". O resto é um problema entre "as firmas que se apresentaram a concurso e os seus colaboradores" (PÚBLICO, 3.7.2012). Por outras palavras, a selva!

Mas, afinal, quanto vale o trabalho? Partindo do princípio que o salário é a base da organização coletiva das nossas vidas, dele dependendo o bem-estar, quanto é justo que recebamos por uma atividade que ocupa 30%-50% do nosso quotidiano? A remuneração do trabalho é um dos índices mais objetivos da dignidade social e moral que lhe atribuímos, e o direito a ele continua inscrito em muitas constituições, por mais que a política económica das últimas décadas se empenhe em ofender tal direito.

Quanto vale, por exemplo, o trabalho dos nossos patrões? Fui rever informações sobre alguns casos, e centrei-me naqueles que dirigem empresas com participação do Estado, que já foram integralmente públicas, e que gerem serviços públicos. O presidente da REN, Rui Cartaxo, por exemplo, ganhou em 2011 317 mil euros (cf. Correio da Manhã, 7.3.2012). Descontados os feriados e as férias, e consideradas oito horas de trabalho diárias, este montante corresponde a 171,54€/hora, isto é, o salário de mais de 43 enfermeiros. Na EDP, António Mexia terá ganho, em 2009, 703 mil euros em salários, mas um total de 3,1 milhões se agregados os prémios todos a que teve direito (cf. DN, 6.4.2010) numa empresa na qual o Estado tinha ainda uma posição preponderante. Por hora, o cálculo dá a bagatela de 1670€! Para lá chegar, juntem-se aí uns 422 enfermeiros, coisa pouca... Três anos depois - e quão desgraçados têm sido eles para a grande maioria dos portugueses, e para os clientes da EDP! -, a comissão de vencimentos da empresa propôs que Mexia mantivesse o salário e os prémios que ganha desde 2006 (cf. i, 16.3.2012). A crise, definitivamente, parece-se com as cheias: raramente chega aos andares de cima...

É claro que poderíamos passar para os salários absurdos de jogadores de futebol transformados em heróis nacionais. Cristiano Ronaldo, a ser verdade o que se escreve na imprensa, terá ganho em 2011 no Real Madrid, entre salários e prémios, 12 milhões euros, 6500/hora. Já agora, diz-se que declara ao fisco o salário mínimo espanhol... Nessa nova unidade da indignidade salarial, a de enfermeiros-portugueses-setor-público, isto dá mais ou menos uns 1640!

É aceitável esta discrepância? É possível Mexia ter 422 mais necessidades do que um enfermeiro? A sua formação de base (17 anos de escolaridade) é idêntica. É que nos repetem desde há anos que o problema é a baixa produtividade dos trabalhadores (e a dos gestores, não?), e culpa-se desse facto a comparativamente baixa preparação de grande parte da mão de obra. Não são 17 anos de formação de base suficientes?...

O problema da economia portuguesa não é esse. O problema está na guerra feroz que se tem vindo a travar contra o valor do trabalho para impor a legitimidade da desigualdade e da apropriação do valor produzido por quem trabalha. Quatro por cento dos trabalhadores recebem salários líquidos inferiores a 310€ por mês; 31,5% ganham entre 310€ e 600; 27,9% ganham entre 600€ e 900€. Nestes escalões estão quase 2/3 dos assalariados portugueses. Nas atuais circunstâncias, por quantas pessoas não se terá de distribuir esse dinheiro?

As coisas não foram sempre assim. O peso da remuneração do trabalho no conjunto da riqueza produzida em Portugal tem vindo a descer quase permanentemente desde 1975. Segundo o Eurostat, essa proporção, sem considerar as contribuições patronais, era de 47,4% em 1973, 59% em 1975 e de apenas 34% (cálculos do economista Eugénio Rosa) em 2008! Por outras palavras, o trabalho representa hoje muito menos que no último ano da ditadura! À luz destes dados, que figura fazem as vozes cândidas que se perguntam como é que há gente desiludida com a democracia, se esta se transformou num liberalismo feroz que favorece os ricos?

Os estudos demonstram, e a nossa perceção o confirma, como é negativo o caminho feito por Portugal neste domínio: mais pobres cada vez mais pobres, poucos ricos cada vez mais ricos. E estes que nos explicam, pomposos, que a crise se resolve descendo mais ainda os salários. Os deles, não!; os dos trabalhadores que suam para que eles se façam mais ricos ainda.

terça-feira, 3 de julho de 2012

SERÁ MOMENTO DE MUDANÇA?-Tombuctu

JORNAL PÚBLICO de 03.07.2012

Património mundial
Islamistas dizem que estão a "90% dos objectivos" de destruição de Tombuctu
Por Ana Gomes Ferreira e Cláudia Carvalho
Não querem apenas destruir monumentos históricos na região tuaregue. Querem conquistar todo o Mali
O grupo islamista Ansar ed-Dine (Defensores do islão) derrubou ontem a porta sagrada da mesquita Sidi Yahia de Tombuctu. Um porta-voz do grupo disse à BBC que está quase concluída a missão de destruição dos monumentos do Norte do Mali que não respeitam as regras do Islão.

"Estamos a 90% dos objectivos", disse o porta-voz desta rede fundamentalista salafita (regem-se pelas práticas dos primeiros muçulmanos), explicando que a lei islâmica (sharia) determina que os túmulos devem estar a um máximo de 15 centímetros acima do solo.

"Eles [combatentes islamistas] arrombaram a porta de entrada de uma das mesquitas classificadas (a de Sidi Yahia) e prometem destruir todos os lugares considerados sagrados, incluindo os cemitérios e os locais com símbolos artísticos", contou Lassana Cissé, do comité científico do ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios) e responsável pelo património mundial no Mali, que teme pela destruição total do património neste local classificado pela UNESCO.

No fim-de-semana a Ansar ed-Dine iniciou uma acção de destruição de monumentos históricos e classificados como património da humanidade em Tombuctu. Sete dos 16 templos foram danificados e alguns cemitérios porque, sob os túmulos de homens santos, foram edificadas mesquitas. O porta-voz lembrou ainda que os muçulmanos não devem venerar pessoas, ou seja, não há intermediários entre os fiéis e Alá e que existe um só profeta, Maomé. Os túmulos dos homens santos e a veneração que lhes é feita é, nesta visão radical, idolatria.

Os islamistas "querem destruir todo o património significativo ligado a um Santo ou uma tradição ancestral (crença em fenómenos sobrenaturais e lendas)". "A única razão é o extremismo religioso, o fanatismo e o obscurantismo cultural", afirmou Lassana Cissé, que falou com o PÚBLICO por correio electrónico.

A mesquita ontem profanada data do século XV - como a maioria dos monumentos desta cidade no Norte do Mali -, considerado o período de ouro de Tombuctu, quando esta era o centro intelectual do Islão e a mais importante cidade da rota das caravanas do deserto. Os muçulmanos acreditavam que quando aquela porta, nunca violada, fosse aberta, o fim do mundo estaria iminente.


"Isto é intolerável. O próprio profeta visitou estes túmulos", disse a procuradora do Tribunal Penal Internacional Fatou Bensouda, que é muçulmana e pretende iniciar uma investigação criminal. Situada às portas do deserto do Sara, Tombuctu fica a mil quilómetros da capital, e tem 30 mil habitantes. É património da humanidade desde 1988 e deve a sua fundação aos tuaregues.


Há escassos dias, a UNESCO declarara que o património de Tombuctu estava em risco - ontem o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, alertou para a necessidade de o proteger das contendas políticas e apelou à paz na região.

O Afeganistão africano

Tombuctu, ou antes todo o Norte do Mali - que é com frequência mencionado como o Afeganistão de África - está em guerra. Os líderes separatistas da região tuaregue (que se estende a áreas da Nigéria, Argélia e da Líbia) declararam a independência, aproveitando a tentativa de golpe de Estado em Março na capital, Bamako. O Mali tem um governo de transição, mas o vazio de poder foi aproveitado pelos grupos armados islamistas que já dominam grande parte do Norte tuaregue.

Estima-se que as forças separatistas rondem os 3000 homens, sendo os islamistas cerca de 200. Estes estão, porém, melhor armados e organizados - a Ansar ed-Dine terá ligações à Al-Qaeda. O seu líder é Iyad Ghaly, de uma família influente do Norte e que participou noutros golpes de Estado. A Ansar ed-Dine quer dominar todo o país; o movimento de libertação tuaregue diz-se uma organização laica.


Com a situação longe de uma solução, a urgência é preservar o património histórico, embora isso pareça tudo menos garantido. Além do património edificado, em Tombuctu há mais de 700 mil manuscritos da época de ouro da cidade, os séculos XV e XVI.

SERÁ MOMENTO DE MUDANÇA? - Chefe de espionagem interna alemã...

JORNAL PÚBLICO de 03.07.2012

Alemanha
Chefe de espionagem interna alemã sai após destruição de ficheiros sobre neonazis
Por Maria João Guimarães
Em causa estão documentos sobre membros de célula que matou dez pessoas durante quase uma década
O responsável pelos serviços secretos internos da Alemanha, Heinz Fromm, demitiu-se na sequência de um enorme escândalo que estourou na semana passada, quando se soube que documentos ligados a uma célula de neonazis que durante uma década mataram dez pessoas, na maioria imigrantes turcos, tinham sido destruídos.

Aparentemente, a destruição foi levada a cabo por um agente sem ter sido ordenada pela sua chefia. Os documentos diziam respeito a uma operação de recrutamento de informadores de um grupo de extrema-direita do estado federado da Turíngia, onde a célula de neonazis responsabilizados pelos assassínios tinha vivido antes de entrar na clandestinidade.

Aliás, os nomes de dois dos membros da chamada célula de Zickaw - Uwe Bönhardt e Uwe Mundlos - estavam entre os nomes de uma lista de 73 "homens em idade militar" elaborada pelo serviço de contra-informação militar alemão, diz a revista Der Spiegel - lista cujo objectivo não era claro. De resto, os documentos incluiriam os nomes de 35 candidatos e dos oito recrutados como informadores.

Os ficheiros foram destruídos a 12 de Novembro do ano passado - pouco depois de um episódio quase cinematográfico: uma tentativa de assalto a um banco que correu mal levou a uma perseguição policial e acabou com a morte (assassínio-suicídio ou duplo suicídio) dos dois envolvidos. Estes tentaram ainda incendiar o local onde viviam para apagar as pistas que os ligavam a dez mortes ocorridas anos antes (entre 2000 e 2009), mas não conseguiram. Só então foi desvendado o mistério dos dez assassínios.

A divulgação da destruição dos ficheiros pouco depois desta descoberta foi recebida com incredulidade de políticos da esquerda à direita. "Estes incidentes tornam difícil uma refutação convincente das teorias da conspiração", afirmou Sebastian Edathy, do Partido Social Democrata (oposição), dirigente da comissão parlamentar que investiga as falhas que permitiram ao grupo manter-se na clandestinidade e matar tantas pessoas sem as autoridades nunca seguirem a pista da extrema-direita, preferindo sempre a de máfias ou ajustes de contas.

A destruição, afirmou pelo seu lado Clemens Binninger, da União Democrata Cristã (CDU, partido da chanceler, Angela Merkel), dá azo a "todo o tipo de teorias", por exemplo, que nos serviços secretos há quem tenha ligações à extrema-direita ou simpatia pelos neonazis.

Sabe-se que pelo menos nos seus esforços de infiltração os agentes terão, por vezes, ido além do seu papel. Um processo para a ilegalização do Partido Nacional Democrata (NPD), em 2003, falhou aliás quando se percebeu que algumas das tiradas mais provocatórias e anticonstitucionais tinham sido proferidas por espiões infiltrados no partido.

O caso da morte dos nove estrangeiros ou alemães com ascendência estrangeira (turca na maioria dos casos, grega no outro) e de uma agente da polícia provocou uma enorme onda de indignação na Alemanha.

Como foi possível à chamada célula de Zickaw operar impune durante uma década? Os seus três membros - para além dos dois homens que morreram na sequência da perseguição, havia uma mulher, que se entregou depois às autoridades - tinham já sido referenciados como elementos perigosos durante a sua actividade na Turíngia. Como é que as autoridades lhes perderam o rasto? Há muitas perguntas sem resposta e a destruição dos ficheiros veio adensar ainda mais o mistério.

A CAMINHO DA TOTAL ESCRAVIDÃO - Na fila do supermercado.

JORNAL PÚBLICO de 03.07.2012 

Na fila do supermercado
Por José Vítor Malheiro

Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras.
Escolho a fila do supermercado de acordo com os critérios consabidos. A mais curta, mas não apenas a mais curta em pessoas. Depende da quantidade de compras que as pessoas tenham. É preciso escolher a fila com menor número de compras. Mas não apenas em número absoluto, porque o dono do restaurante com o carrinho cheio de caixas de minis pode despachar-se rapidamente ("São 32 embalagens de dez".) A variedade das compras também conta. E a determinação dos compradores - um factor muitas vezes ignorado. Há quem esteja na bicha com o firme propósito de se despachar rapidamente e sair dali para fora. E há quem esteja na bicha mas olhe ainda em volta, para trás, consulte a lista de compras, passeie os olhos pelas prateleiras com saudades. São os shopping lovers. São os que nos podem dizer com um sorriso, depois de ter despejado o carrinho no tapete rolante mesmo à nossa frente: "Importa-se só que vá ali buscar uma coisa num instantinho?" A palavra balbuciar foi inventada para estas circunstâncias. Balbuciamos qualquer coisa ininteligível. Talvez seja "Claro que não me importo, faça favor. Não tenho pressa nenhuma" ou "Mas por que raio é que não se lembrou disso antes de se vir pôr na bicha?", mas que soa como "hahhm..." E, claro, fugir das famílias. As famílias podem ser perigosas e é preciso detectá-las. São como as passagens de nível onde um comboio pode sempre esconder outro. Aquela mulher só com um shampoo na mão e um ar alucinado pode, no último minuto, ser abalroada pelo resto da família com dois carrinhos cheios. É preciso intuição. Não vale a pena dizer nada. A mulher do shampoo estava a "guardar o lugar". Nem é pelos dois carrinhos de compras. É pelo potencial de altercação familiar. Tudo o que se comprou, o que alguém se esqueceu de comprar e o que alguém não comprou na semana passada quando estava mais barato pode ser o enredo de um choque conjugal surdo. As crianças também. Pode ser quotidiano a mais para uma ida ao supermercado. Tenho nos meus cadernos notas para vários romances que foram conseguidas só a ouvir as famílias à minha frente na fila do supermercado. Ah, e claro, é preciso ver se não existe já um incidente em curso na caixa. Se a senhora da caixa parece descontraída e olha para as unhas e o cliente à sua frente olha para o ar, é porque estão à espera da supervisora para ela enfiar uma chave e teclar um código e anular uma operação com os gestos treinados de um instrutor dos Comandos que mostra como se monta e desmonta uma AK47. É melhor escolher uma caixa onde a "caixa" pareça desvairada, passando mecanicamente pacotes pelo laser vermelho ting! e pesando fruta num ápice ting! e alisando códigos de barra com a unha ting! enquanto mete tudo em sacos, faz trocos, dobra talões, entrega cartões e passa recibos. Se a "caixa" tiver uma cara inexpressiva e o olhar no vácuo é provável que esteja numa boa bicha.

E depois há o gosto pessoal, claro. Um carrinho de supermercado é um livro aberto, uma janela escancarada sobre a vida alheia à frente dos nossos olhos, um convite ao voyeurismo, como uma corda com roupa a secar ou o livro que a pessoa lê à nossa frente no metro. Sei como é o olhar de condenação dos outros quando se tem no carrinho 20 garrafas de vinho e um litro de leite. Ou o olhar crítico que as mães responsáveis nos lançam quando só temos hambúrgueres, batatas fritas, bolachas de chocolate e pastilhas (neste caso aconselho atirar para o carrinho um saco de maças Granny Smith para suavizar a imagem).

Uma fila de supermercado é uma colecção de histórias e há umas que parecem mais prometedoras do que outras. Mas nem todas são agradáveis. Nos últimos meses, as filas de supermercado contam histórias tristes.

A fila que escolhi hoje é pequena. À minha frente, está uma mulher de uns 30 ou 40 anos, elegante, com um olhar vivaz e um sorriso inteligente (não, não é um critério, mas pode acontecer, pronto) que leva meia dúzia de compras na mão (critério). Está vestida com um tailleur saia-e-casaco e sapatos pretos de salto, formais, certamente por necessidade profissional. Pousa as compras no tapete e murmura qualquer coisa à empregada. Percebo que lhe pede para ir fazendo subtotais, à medida que vai registando as compras. Há vários iogurtes mas estão separados, em vez de estarem num conjunto de quatro, como na prateleira. A caixa passa várias compras e quando o subtotal atinge 3 euros e 73 cêntimos a cliente diz "está bem assim". No tapete fica um iogurte natural e um pacote de bolachas da marca do supermercado que a caixa põe de lado num gesto rápido, numa pilha heteróclita onde há outros restos de compras. A mulher elegante paga os 3,73 euros com Multibanco.

Esta história é sobre uma mulher elegante de 30 ou 40 anos, com um sorriso inteligente, que trabalha num sítio onde lhe exigem que se vista com alguma formalidade e que só tem quatro euros no banco.

A CAMINHO DA TOTAL ESCRAVIDÃO - O suicídio nacional

JORNAL PÚBLICO de 03.07.2012

O suicídio nacional
Por Domingos Ferreira

"Os salários têm que descer em Portugal", afirmam os economistas do regime. E acrescentam: "até Krugman, que é o darling da esquerda, afirma que os salários devem descer 30%". Contudo, não esclarecem que esta afirmação foi efectuada há mais de um ano. E não informam, ainda, que, neste último ano, a massa salarial teve uma queda de cerca de 30%. Para estes fundamentalistas, é absolutamente negligenciável o facto de um em cada três portugueses estar desempregado ou subempregado e de a economia estar a morrer, em resultado das políticas suicidárias de austeridade. Assim, a ortodoxia económica (responsável pelo actual estado caótico em que nos encontramos) continua a insistir em novos cortes salariais apesar de a evidência demonstrar que é absolutamente falsa a necessidade de descer mais os salários. Senão vejamos: na medição da produtividade das empresas são incorporados vários factores, designadamente a energia, os transportes, as comunicações, os salários, os impostos, etc. Se, nesta estratégia de desvalorização interna, na minha opinião, errada, os salários já desceram em 30%, colocando a produtividade nos níveis médios europeus, e as empresas nacionais continuam a não ser competitivas, então, dever-se-á efectuar mais cortes, mas nos restantes factores. Isto é, não devem ser efectuados mais cortes nos salários, pois isso só agravará ainda mais o estado depauperado do país. Por conseguinte, o ajustamento dos níveis de produtividade deverá ser efectuado através de cortes no preço da energia, dos transportes, das comunicações, das portagens e até dos impostos (cujo aumento resultou, não surpreendentemente, na queda da receita fiscal).

Todos nós sabemos que estes factores são os mais caros da UE relativamente ao respectivo PIB, que estas empresas apresentaram lucros multibilionários (para benefício, apenas, de alguns), empobrecendo o resto do país, e que os seus gestores auferem salários obscenos (até no contexto internacional). Embora o memorando da troika preveja a abertura destes sectores da economia à concorrência, o facto é que até à presente data não foi tomada nenhuma medida nesse sentido. Por isso, coloca-se a seguinte questão: por que não baixam os preços? Pela simples razão de que não existe diferença entre os líderes políticos e os líderes económicos. Todos sabemos que a maior central de negócios é o Parlamento e o Governo. Todos nós sabemos que os líderes políticos são os gestores destas empresas ou a elas têm fortíssimas ligações. Logo, as suas maiores preocupações são apenas satisfazer os interesses dos accionis-tas e assegurar, no futuro, os seus empregos quando não estiverem no Governo.

Neste sentido, Eduardo Catroga e Miguel Frasquilho, entre muitos outros, constituem um paradigma a estudar. Lamentavelmente, a ortodoxia económica dominante esqueceu o que aprendeu no primeiro ano dos seus cursos, nomeadamente que, em períodos de recessão ou abrandamento económico, devem ser implementadas medidas monetárias expansionistas. Contudo, escandalosamente mais grave são os cortes cegos e draconianos não só às universidades e à investigação científica, que pode comprometer o futuro de um Portugal moderno e desenvolvido. Não bastasse o facto de grande parte dos professores universitários serem precários e milhares de alunos estarem a abandonar as licenciaturas por dificuldades económicas, acresce que milhares de investigadores nos EUA vêem agora os seus doutoramentos e pós-doutoramentos seriamente comprometidos em resultado dos cortes em cerca de 60% no subsídio às propinas. Vale a pena lembrar que as bolsas não são actualizadas há mais de dez anos. Deste modo, inaceitavelmente, milhares de mentes brilhantes portuguesas irão abandonar projectos de investigação com grande prejuízo para o país.

Como é possível que os portugueses (talvez hipnotizados pelo futebol, telenovelas e centros comerciais) assistam à destruição da economia e do modelo social de forma passiva? A democracia não se esgota no voto. Em democracia, para além da separação de poderes, de pesos e contrapesos, exige-se também a participação de todos de forma activa e atenta. Mas a insanidade torna-se insustentável em Espanha, o epicentro da crise, onde o futuro da UE se irá decidir. Neste país já em recessão comatosa com cerca de 25% de desempregados (sendo 50% jovens), a ortodoxia económica impõe mais austeridade, o que já resultou não só no agravamento da recessão, como também no dramático aumento dos juros da dívida. Está alguém surpreendido?

domingo, 1 de julho de 2012

EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA

Crónica publicada no Jornal Público de 30.06.2012:

Debate
Professores
Por Ana Benavente

Passam os anos, sucedem-se os governos, fala-se da importância da educação, apregoa-se na "Estratégia de Lisboa" (União Europeia) a economia do conhecimento e chegamos hoje a um estranho momento. Em democracia, assistimos à destruição da escola pública, ao aumento das desigualdades e tudo (isto) sob a aparência de uma "falsa" racionalidade que mais não é do que ideologia conservadora. São os mega-agrupamentos, o Estatuto do Aluno fixando bem nos olhos os mais pobres, é a exclusão na ordem do dia, são os curricula que afastam todas as áreas que não correspondam a disciplinas tradicionais (de há dois séculos, atenção). Mas vou dirigir-me aos professores, cuja acção é decisiva na escola e que vivem, também, dias difíceis, de desvalorização e de desemprego.

1. Em 1995, a palavra de ordem do Governo de A. Guterres era a de "fazer as pazes com os professores". Por duas razões: porque os anteriores governos do PSD tinham bloqueado as suas carreiras, havia muito descontentamento e tensão, e, segunda razão, porque é importante valorizar a profissão docente se queremos educação de qualidade. Uma iniciativa, há muito esquecida, a da apresentação ao Parlamento e a todos os parceiros, do "Pacto Educativo para o Futuro" (procurando "estabilizar" algumas dimensões estruturantes da instituição escolar para além dos partidos e das equipas governamentais), previa a valorização dos professores e da sua acção.

Tal "Pacto" foi recusado pelo Parlamento e continuámos com o "faz e desfaz" que caracteriza a realidade educativa.

2. Nos finais dos anos 90, os professores de todos os graus de ensino passaram a ter uma formação inicial com nível de licenciatura, acabando com a desvalorização do 1.º ciclo, ciclo vital para todas as aprendizagens. Desenvolveu-se a formação contínua e reconheceram-se novas modalidades mais centradas na escola. Foram parceiros na construção de "boas práticas" e temos hoje uma escola com bons professores (muito bons, bons e menos bons, como noutras profissões). Mas a OCDE - que não é suspeita de ser "filha de Rousseau" - divulgou, num dos seus estudos comparativos, que Portugal é um dos países em que a relação professor-aluno é mais positiva e em que estes mais reconhecem a competência dos seus docentes. Afirmação pouco divulgada junto da opinião pública.

3. Nos anos 2000, com o regresso ao governo do PSD e, mais tarde, do PS de Sócrates, o Ministério da Educação aliou-se a pais e a autarcas. "Dispensou" qualquer acordo com os docentes, tornando-os os "bombos da festa" a propósito de um modelo burocrático e insólito de avaliação docente. A opinião pública suspeitou que afinal "eles" não queriam era ser avaliados. Isso fez mal à profissão. Foram milhares de professores que então saíram à rua e a tal avaliação foi-se enrolando, as escolas cada vez mais burocratizadas, a acção docente menos valorizada. Mantenho a convicção de que o diálogo é fundamental para a acção docente e para a vida das escolas. Um decreto não cria uma boa escola, (mas) porém pode destruir muito trabalho positivo. A acção dos professores faz toda a diferença entre exclusão e integração, entre ignorância e conhecimento. Mas, para isso, há que apoiar, acompanhar e avaliar todas as dimensões da vida educativa.

4. Agora, de há um ano para cá, com o PSD/CDS no governo e com a crise como álibi (que jeito dá o medo que tudo invade), cada dia traz o seu lote de medidas para condicionar as escolas. Sem negociações, sem avaliações, nada. Pura ideologia. Com cifrões nos olhos: aumentam o número de alunos por turma, diminuem as horas atribuídas às escolas para actividades físicas, impõem exames finais nacionais, desde o 4.º ano de escolaridade. Obrigam, assim, os professores a orientarem o seu trabalho segundo esta avaliação. Uniforme. O ministério não presta contas, não prepara as medidas que impõe, surpreende os docentes com contagens de tempo que os penalizam e prepara um futuro assustador.

Até a OCDE deve estar admirada com tamanho ímpeto legislativo ad hoc.

Que ricos somos nós, com milhares de professores desempregados, desprezando o saber, o conhecimento e a qualificação!
(FIM)

NOTA: O bold e o sublinhado são da minha autoria.

Portugal não é um negócio

Crónica publicada no Jornal Público de 30.06.2012:


Portugal não é um negócio
Por São José Almeida
A história da democracia não pode ser comparada e reduzida aos resultados da contabilidade

 
Portugal "não pode estar 37 anos sem gerar uma única vez um excedente orçamental". A afirmação é de Passos Coelho, primeiro-ministro do Governo português, e foi dita na Assembleia da República, na quarta-feira, em resposta à deputada d"Os Verdes Heloísa Apolónia, no debate preparatório da Cimeira Europeia. Ao fazer tal afirmação, Passos Coelho insultou os portugueses e insultou a história do país.

Passos Coelho não só insultou os portugueses como fez aquilo que pode ser considerado uma manipulação intelectual para obter dividendos políticos, distorceu e simplificou a complexidade da realidade, para afirmar uma suposta verdade absoluta, para a qual não admite discussão nem alternativa e que lhe advém da sua convicção política, próxima da fé-cega, no neoliberalismo.

Uma convicção numa doutrina política que submete o funcionamento da sociedade à lógica do lucro privado, que apenas entende a esfera pública com o objectivo de servir o interesse privado, e que tem como objectivo reduzir a mínimos assistencialistas as funções sociais do Estado e empobrecer a sociedade para aumentar o lucro de alguns: os detentores do sistema financeiro, a quem as aristocracias políticas servem.

Ora, segundo essa ortodoxia, que tem vindo a alastrar o seu poder nos últimos 30 anos e que hoje é culturalmente dominante e hegemonicamente reinante nas decisões políticas da União Europeia, a gestão política está submetida ao critério do lucro, do mercado, do interesse privado empresarial. Logo, o défice passou a ser imposto como princípio determinante da gestão dos Estados. Ou seja, os Estados passaram a ser vistos como empresas, como algo que tem de ter "um excedente orçamental", como algo que tem de dar lucro. E não como uma comunidade que tem como fim organizar-se de forma a obter o máximo bem-estar para todas as pessoas que a compõem, isto é, o interesse público. Passos Coelho, ao fazer a afirmação que fez, olhou para o país como quem olha para um negócio. E, por isso, ofendeu os portugueses.

Mas a afirmação de Passos Coelho vai mais longe na despudorada ofensa que faz aos portugueses e à sua história. E vai mais longe porque usa como critério para aferir a sua lógica de lucro os últimos 37 anos da história de Portugal, ou seja, de 1975 até hoje, comparando o que não é comparável e reduzindo a uma absurda simplificação a complexidade histórica e social. Passos Coelho reduz assim os últimos 37 anos a um fiasco, porque a sua preciosa contabilidade pública deu sempre défice.

O que Passos Coelho não disse - e que admito que provavelmente não saiba, pois não o quero acusar de o estar a omitir deliberadamente - é que a história de Portugal é caracterizada pelo défice do seu balanço comercial, uma característica próprio de um país que é periférico, pequeno e economicamente subdesenvolvido. Apenas em alguns anos do Estado Novo, a situação não se verificou, graças as famosas "campanhas do trigo", que nos anos quarenta diminuíram a importação de cereais, mas destruíram o equilíbrio agrícola do Alentejo ao introduzirem a monocultura do trigo.

O que Passos Coelho não disse - e que admito que provavelmente não saiba, pois não o quero acusar de o estar a omitir deliberadamente - é que, até o seu querido e adorado neoliberalismo dominar a política europeia, o défice não era um problema determinante na avaliação e na gestão dos Estados. Mas que o desenvolvimento dos Estados era aferido e ainda é, segundo por exemplo a ONU, por critérios de desenvolvimento como os índices de mortalidade infantil, média de vida, esperança de vida, os níveis de prestação de serviços de saúde pública, as taxas de escolaridade, os índices de analfabetismo. E nestes domínios a história dos últimos 37 anos em Portugal é de absoluto sucesso.

O que Passos não disse - mas isto sabe e omitiu - é que os últimos 37 anos são os da história da construção e do sucesso da democracia. Em 1975 agravou o défice? E 1973? A diferença é que, em 1975, os portugueses começavam a deixar de andar descalços e passaram a ir todos - mas todos mesmo - à escola. É um ano em que o país começava a ser arrancado da miséria e da ditadura, graças à revolução de Abril.

Daí que haja uma pergunta que, como portuguesa que se sente ofendida, que não está disposta a ser insultada e que não está disponível para que a sua vida seja comparada aos resultados da contabilidade, sinto necessidade de fazer. Ao comparar o Portugal de hoje com o Portugal de há 37 anos e ao reduzir a história da democracia portuguesa ao insucesso do défice, qual a solução que Passos Coelho admite que seja viável para resolver a sua preocupação com a contabilidade num país periférico e economicamente subdesenvolvido? Que os portugueses voltem a andar descalços? O regresso à ditadura?
(FIM)

NOTA: O bold e o sublinhado são da minha autoria.